Friday, October 31, 2014

Vossa Excelência - parte I de III

Vossa Excelência - parte I de III 

(Ver notas 1, 2)




Concluída a pauta na casa legislativa
O dia se encaminhava pra um desfecho ordinário
Palavras finais se alternavam brevemente
Até que a calmaria foi perturbada abruptamente
Por um dos presentes com seu discurso panfletário

Um deputado conhecido por suas idéias progressistas
Acusa um outro deputado, desafeto de família
Sem causa específica ou razão aparente
A palavra é tomada de forma imprudente
Acabando com qualquer sombra de monotonia


"Senhor presidente lhe peço a palavra
E me dirijo ao colega, nobre deputado
Cujo a conduta me trouxe a necessidade
De entoar um discurso e mostrar a verdade
Sobre o que tenho visto de torto e de errado

Fostes eleito pelo voto do povo
A quem prometeu trabalhar noite e dia
No entanto os frutos de vossa empreitada
Caíram todinhos em vossa calçada
E dentro das cercas de vossa família."



Ao perceber que estava sendo acusado
O deputado interrompe sem ser convidado:


"Pela ordem, a palavra, senhor presidente
O nobre colega me falta com o respeito
Vossa Excelência faz da brisa, tempestade
Entoa a mentira e lhe chama de verdade
E omite que, assim como eu, foste eleito

Fizeste promessa de acabar com a miséria
E anunciaste a chegada de um novo tempo
Mas se olhares os feitos dessa trajetória
Não precisas nem mesmo apelar pra memória:
Quem vivia sem casa ainda dorme ao relento!"


Inconformado por ter sido interrompido
O acusador retoma a palavra enfurecido:


"Não concedo o aparte à Vossa Excelência
Que altera os rumos dessa minha fala
Distorces a verdade com eloqüência
Diante dos ricos mostras subserviência
E diante da miséria, se omite e se cala

Nas prerrogativas de vosso mandato
Está a defesa desse povo carente
Mas ao que parece a vossa ganância
Mostra refinamento e muita elegância
Enquanto dá as costas a toda essa gente."



O acusado então - deputado experiente
Ainda sem ser convidado, interrompe novamente:



"Pela ordem interrompo, senhor presidente
O nobre colega atenta à razão
Botando em questão minha honestidade
Quer fazer da miséria exclusividade
Quando ela é um patrimônio dessa nação

A elegância da qual o colega me acusa
Pode ser encontrada em vosso terno engomado
e a gente importante que lido com freqüência
São os mesmos que brindam com Vossa Excelência
Nem sempre questões referentes ao Estado."


O acusador então, diante de tal assertiva
Eleva o tom da conversa pra terminar de forma incisiva:


"Engrosso o discurso contra Vossa Excelência
Por seres leviano e mal-educado
Vociferas bobagens buscando a tangente
Com um sorriso nos lábios e a alma contente
Disfarçando as mazelas de que és culpado

Termino dizendo que nada tenho a esconder
Nem mesmo as incoerências dessa democracia
Mas não vendo minha honra e exijo respeito
De Vossa excelência que não tens o direito
E nem tens moral pra me acusar de vilania!"



O acusado nem esperou o final da sentença
Levantou-se e retrucou já com pouca paciência:


"Meu caro colega, se respeito é o que queres
Deverias pensar antes de abrires a boca
Pois falar em demasia além de inconveniente
Pode causar desconforto e fazer muito mal aos dentes 
deixando seqüelas maiores do que apenas a voz rouca

Me alegra saber que o nobre colega
Termina seu discurso e sai de mansinho
Vaidoso que és tens bastante a perder
Pois também sei bastante e tenho muito a dizer
E das mazelas do ofício não padeço sozinho!"



Com a pele vermelha e a faca entre os dentes
Ambos deixam a palavra e partem pra agressão
Os demais deputados evitam o vexame
Tirando os combatentes daquele certame
Enquanto o presidente encerrava a sessão

O debate caloroso na casa legislativa
Não gerou punição ou conseqüências pelo fato
As regras do jogo todos sabem com clareza
Após cada eleição há uma única certeza
De que ambos lá estarão para mais um novo mandato.







Notas do autor:

1. Os pronomes e a concordância verbal através dos versos refletem primeiramente
a linguagem corrente utilizada pelos parlamentares e não necessariamente
a norma culta.

2. O poema se refere a uma situação fictícia, reproduzindo o ambiente
historicamente presente na política dos "coronéis", não só no Brasil como em outros países,
não tendo nenhuma relação direta, à princípio, das personagens
do poema com políticos da cena atual brasileira.





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