Friday, August 22, 2014

Epitáfio

Era uma tarde calma!

As confusões de minha cabeça me afastavam mais e mais das pessoas. Decidi andar sozinho depois do almoço. Por fim sentei-me no banco da praça. Todos os dias pela manhã e no final da tarde passava por ali no caminho entre minha casa e o trabalho, mas nunca havia parado.

Fiquei ali olhando as pessoas sem pensar em nada. Apenas olhando, quando uma das sombras que acompanhava com minha mente vazia tomou forma. Era uma senhora, elegantemente vestida para aquela tarde acinzentada e fria. Ela tinha algumas flores nas mãos - rosas vermelhas e brancas. Ao observá-la por alguns minutos, entendi que, com muita simpatia e cuidado, as flores eram oferecidas a pessoas que a velhinha escolhia ao acaso enquanto caminhava lentamente. A simpatia, o sorriso e a gentileza daquele gesto me ofendiam - me agrediam inexplicavelmente. Dirigi meus olhos pra outro lado e sem grandes raciocínios filosóficos minha cabeça estava vazia novamente, aproveitando os poucos minutos que me restavam antes de voltar ao trabalho.

Esse estado de letargia me tira a noção de tempo e espaço, de modo que só percebi a voz que me chamava quando não havia mais chance de me esquivar.

" - Moço, posso lhe oferecer uma rosa?"

Para ganhar tempo e ajustar minhas reações, sorri levemente e me desculpei, como se não tivesse escutado - uma reação calculada que utilizo há anos com frequência, simplesmente pra ganhar tempo de resposta em situações inesperadas. Então ela repetiu:

" - Posso lhe oferecer uma flor?"

Nos minutos anteriores quando a observava, notei que as pessoas reagiam de formas variadas, desde a surpresa agradável até uma indiferença quase contrangedora. Apesar de minha aversão às pessoas, sou conhecido por ser cordial e educado, e não quis parecer indiferente, por mais que aquele ato fosse, não só indiferente, mas incômodo.

" - Muito obrigado. A senhora é muito gentil" disse eu com um sorriso. As pessoas também dizem que tenho um sorriso muito bonito e fácil. Aprendi a usá-lo convenientemente - não sei ao certo se por conveniência ou vaidade. Não importa! 

Ela agradeceu enquanto retomava lentamente sua caminhada, quando eu - talvez por vaidade, talvez pela culpa de receber tanta gentileza sem nada oferecer, perguntei:

" - Existe um por quê dessas rosas? Um significado?"

Ela respondeu vagarosamente: " - Apenas um pedido, uma lembrança." 

Sorri e retruquei em tom de admiração: "Que bonito! A senhora faz isso há muito tempo?"

E ela então, naturalmente, deu uma resposta que mudou completamente os rumos daquela tarde vazia.

Ela respondeu: " - Há quinze anos." - e após uma pausa reflexiva de alguns segundos completou, sorrindo suavemente: " - quinze anos, quatro meses e vinte e três dias".

A primeira coisa que me passou pela cabeça foi arrependimento por ter iniciado aquele diálogo. Eu não tinha gestos, sorrisos ou expressões ensaiadas pra essa situação.  Então apenas repeti balançando a cabeça positivamente, imagino eu, com cara de idiota: " - Que bonito!"

E então ela tomou a frente do diálogo, dizendo: " - A vida é engraçada: às vezes ela nos dá coisas pra que a gente aprenda; às vezes nós repetimos a mesma coisa pra tentar aprender!" E me perguntou: " - Posso lhe mostrar uma coisa?" Após a pergunta, assumiu uma imobilidade assustadora esperando uma resposta. Eu queria dizer não, mas não havia a menor possibilidade de fazê-lo. Então, recobrei o velho sorriso sutil meticulosamente ensaiado pra situações constrangedoras e disse: " - Claro."

Ela pôs as poucas rosas que lhe restavam sobre o banco e sentou-se. Abriu a bolsa. Abriu um pequeno bolso na lateral interna, e tirou um plástico como o que se usa pra guardar documentos. De dentro desse plástico tirou um papel e começou a desdobrá-lo enquanto falava comigo. Nesse momento, meu pânico não estava mais ali. Ela disse: " - Eu perdi uma pessoa muito querida..., na verdade, todos nós perdemos pessoas queridas - faz parte da vida. Mas essa pessoa, meu marido, se foi numa situação muito diferente."

Ela continuou: " - Hoje seria o nosso aniversário de casamento - 47 anos. Mas ele se foi... e me deixou isso. Pode ler se quiser. Eu ainda tenho essa máquina."

Peguei aquele papel em pânico novamente. Eu já conhecia aquele tipo de situação. Acontece quando você vai se deparar com uma lição de vida que te quebra ao meio e te mostra coisas que você não quer ver. Às vezes, coisas que você não está preparado pra ver. Naquele segundo em que trazia a carta aos meus olhos, me lembro de ter pensado por traz de meu sorriso gentil: " - eu só queria ter ficado sozinho em paz."

Ela complementou: " - Ele me deixou isso no dia em que morreu."

As dobras mostravam que aquele papel - na verdade uma carta datilografada - tinha sido cuidadosamente dobrado e guardado. Li a carta em silêncio. Nela estava escrito:



"Este corpo não sou eu!
A partir de hoje, eu estarei em algum outro lugar... ...estarei por aí!!
Olhando esse corpo agora, nenhum de vocês é capaz de me ver: ele é frágil, ele é feio, ele é frio!
Nele não existe mais a poesia que pautou minha vida por todos os lugares onde passei - a poesia que em algum momento, de alguma forma, tocou alguns de vocês!
Essa poesia continua comigo e assim será pra sempre!
Esse corpo acabou, e como tal deveria voltar pro lugar de onde veio: para a terra, para as plantas, flores, frutos! Mas as leis dos homens exigem uma caixa - um caixão. Espero que seja o mais simples e barato. Se queimado, lancem as cinzas desse corpo por aí - casualmente por aí, onde for mais fácil e incomodar menos. Se enterrado, que seja em uma vala simples qualquer, como exige a lei, identificada apenas por uma pedra - a mais simples e barata! Nessa pedra, que seja escrito de forma imprecisa e efêmera - como esse corpo - meu nome, as datas de nascimento e morte, e se possível a frase:
"Este corpo não sou eu! A partir de hoje, eu estarei em algum outro lugar... ...estarei por aí!!"
Por favor, não visitem esse túmulo de tempos e tempos, nem tampouco tragam flores a esse corpo que não sou eu. Ofereçam à mim onde quer que vocês estejam, um sorriso ao vento, um pôr de sol, uma canção, e aos mais ousados, eu pediria que em meu nome - sem que seja necessário dizer meu nome, por favor - ofereçam flores a um desconhecido, pela rua! Corpos ainda vivos que precisam muito mais de flores do que esse corpo onde não estou mais.
Eu estou na poesia das flores."Este corpo não sou eu! A partir de hoje, eu estarei em algum outro lugar... ...estarei por aí!!"
Um beijo à todos. E saiam logo daqui!! Aqui não há mais vida!! A vida de vocês está lá fora e o tempo passa rápido!
Vamos saiam. Vocês ainda têm muito à fazer e muito à aprender!!!
Vamos, acabem com isso e vivam, beijem muito, amém muito, sorriam o máximo que puderem, chorem quando for preciso, ajudem outras pessoas e... ...aos mais ousados, dêem flores à desconhecidos! Talvez uma flor desconhecida em minhas mãos, em um dos caminhos por onde passei tivesse feito toda diferença!
Eu amo vocês! Assim como amei minha vida - que continua agora por outras veredas!
Até sempre!!!"

Tentei usar ao máximo meu auto-controle, minhas expressões pré-fabricadas, minha calma e sensatez aparente - tão familiar à todos que me conhecem. Mas não consegui. Comecei a dobrar a carta, mas a entreguei antes de terminar, enquanto ainda ouvi a simpática velhinha dizer com uma serenidade ultrajante: "Ele pediu. Eu faço pra me lembrar!"

Eu não aguentei. Desmoronei como não me lembro ter acontecido antes. A velhinha pôs a mão em meu ombro e disse: " - Não chore! Está tudo bem!"

Eu estava em pânico por ter perdido o controle. Envergonhado por estar diante de alguém daquela forma, ali, em uma praça pública. Me levantei, agradeci rapidamente tentando me recompor, peguei a rosa - sim, me lembrei de pegar a rosa - e parti andando rapidamente e respirando forte pra retomar a serenidade ensaiada durante anos.

Não voltei pro trabalho naquele dia. E intimamente desejei que o episódio se esvaísse com o tempo de minha memória. Cheguei em casa, tomei um longo banho com a cabeça pensando um milhão de coisas ao mesmo tempo - metade delas perguntava o que havia de errado comigo; a outra metade pedia para esquecer tudo aquilo rapidamente. O coração doía! Mas o episódio não havia terminado ainda.

As pessoas dizem que minha serenidade e meu bom senso são incomuns. Saí do banho bem melhor do que entrei. Me acostumei bem cedo na vida a deixar as coisas pra trás. Após alguns minutos habituais de contemplação do nada em minha cama, me levantei e fui levar a vida adiante. encontrei a rosa onde havia deixado - sobres mesa. Decidi colocá-la em um vaso com água, assim poderia vê-la definhar dia após dia e morrer, e com ela, a lembrança daquela tarde. Percebi então que não haviam espinhos na rosa e que ela havia sido cuidadosamente embalada com um papel laminado roxo e fita adesiva. Ao retirar a embalagem, com alguma dificuldade, encontrei um papel branco que também envolvia a rosa. Um suspiro e as batidas de meu coração se tornaram mais fortes. Ao abrir o papel encontrei nada mais do que uma cópia da carta que havia lido na praça algumas horas antes. Sozinho em casa eu não preciso de disfarces. Chorei um pouco por muito tempo - creio que passei o resto do dia olhando pra carta. Não me lembro de ter colocado aquela rosa em um vaso com água.

Não voltei a caminhar por aquela praça novamente, mas quando passo por ela, sempre olho procurando pela velhinha que nem sei o nome. Nunca mais a vi.

Não sei o significado disso tudo - se é que existe algum -, mas com frequência releio a carta e revivo aquela tarde, sem pânico ou disfarces.

Não sei porque razão o faço.
Talvez seja porque a vida é engraçada:


"às vezes ela nos dá coisas pra que a gente aprenda; enquanto às vezes nós repetimos a mesma coisa pra tentar aprender com ela!"

Às vezes choro, mas só um pouco.
E às vezes... só às vezes... sinto vontade de comprar rosas!


to RW

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